domingo, 18 de maio de 2008

Lembrança de Morrer


Quando em meu peito rebentar-se a fibra

Que o espírito enlaça à dor vivente,

Não derramem por mim nenhuma lágrima

Em pálpebra demente.

E nem desfolhem na matéria impura

A flor do vale que adormece ao vento:

Não quero que uma nota de alegria

Se cale por meu triste passamento.

Eu deixo a vida como deixa o tédio

Do deserto, o poento caminheiro

__ Como as horas de um longo pesadelo

Que se desfaz ao dobre de um sineiro;

Como o desterro de minha alma errante,

Onde fogo insensato a consumia:

Só levo uma saudade __ é desses tempos

Que assombrosa ilusão embelecia.

Só levo uma saudade __ é dessas sombras

Que eu sentia velar nas noites minhas...

De ti, ó minha mãe, pobre coitada

Que por minha tristeza te definhas!

De meu pai... de meus únicos amigos,

Poucos __ bem poucos __ e que não zombavam

Quando, em noites de febre endoidecido,

Minhas pálidas crenças duvidava.

Se uma lágrima as pálpebras me inunda,

Se um suspiro nos seios treme ainda

É pela virgem que sonhei... que nunca

Aos lábios me encostou a face linda!

Só tu à mocidade sonhadora

Do pálido poeta deste flores...

Se viveu, foi por ti! E de esperança

Da vida gozar de teus amores.

Beijarei a verdade santa e nua,

Verei cristalizar-se o sonho amigo...

Ó minha virgem dos errantes sonhos,

Filha do céu, eu vou amar contigo!

Descansem o meu leito solitário

Na floresta dos homens esquecida,

À sombra de uma cruz, e escrevam nela:

__ Foi poeta __ sonhou __ e amou na vida. __

Sombras do vale, noites da montanha

Que minha alma cantou e amava tanto,

Protegei o meu corpo abandonado,

E no silêncio derramai-lhe canto!

Mas quando preludia ave d`aurora

E quando à meia-noite o céu repousa

Arvoredos do bosque, abri os ramos...

Deixai-me a lua prantear-me a lousa!

Álvares de Azevedo

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